quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

UM BRASILEIRO ENTRE OS REFUGIADOS.

COMO TUDO COMEÇOU

O advogado Edgard Raoul Gomes, de 30 anos, queria sentir na pele o que significa ser um refugiado na Europa; então ele largou tudo e passou 26 dias viajando e vivendo como um deles.

Sensibilizado pelas notícias sobre a crise dos refugiados de guerra na Europa, um advogado brasileiro largou tudo para viver uma experiência radical: sentir na pele o que é ser um deles. 

Edgard Raoul Gomes passou 26 dias caminhando ao longo de oito países, carregando apenas uma mochila com roupas, saco de dormir, passaporte e um pouco de dinheiro vivo. Não levou carteira nem cartões de crédito. Dormiu na rua, em parques e estações de trem. Passou frio, fome, foi detido pela polícia, ficou 12 dias seguidos sem tomar banho. Emagreceu 8 quilos no período.

A ideia, conta o paulistano de 30 anos, era ajudar as pessoas que encontrava pelo caminho e, ao mesmo tempo, entender a crise humanitária da perspectiva de um refugiado. “Eu me coloquei na posição do ‘pior’ refugiado, que é o homem jovem, solteiro e sem dinheiro. Dormia no mesmo lugar que eles, comia o que eles comiam. Pude ver o que eles enfrentaram e como o mundo os trata”, conta.

Advogado especialista em direitos humanos, Edgard trabalhava em um escritório de direito em São Paulo, participava de grupos de estudo e tinha acabado de publicar um artigo em um livro de sua área. Mas, diz ele, cansou de focar só na teoria. 

“Minha experiência era muito rasa na parte prática. Eu não sabia o que era sentir na pele a violação de um direito humano”, conta. “Larguei o escritório para fazer aquilo que eu sinto que nasci para fazer, que é ajudar as pessoas.” 

Edgard saiu do Brasil em março de 2015. Primeiro foi para Nova York, com o objetivo de se aproximar de grandes organizações humanitárias e aprender com o trabalho delas. Em novembro, ao ver que a crise dos refugiados estava longe do fim, decidiu partir para a Grécia para atuar como voluntário. 

Foi para a ilha de Lesbos, um dos principais lugares de desembarque de botes improvisados levando refugiados para a Europa. Lá, trabalhou como voluntário independente, ajudando na preparação e distribuição de comida, na construção de tendas de abrigo e no transporte interno de quem chegava. 

O momento mais marcante da viagem, para ele, foi quando ajudou um pai que vinha de uma travessia num bote com a filha nos braços. Ela estava gelada e pálida. Parecia morta. Edgard abraçou a criança com a esperança de que despertasse. "De repente, ela acordou e a entreguei para um grupo especializado, para os médicos", conta
Barco de refugiadosEdgard em um dos barcos que levam refugiados da Turquia à Grécia

Num dia especialmente frio e chuvoso, Edgard alugou um carro para dar carona a algumas famílias no árduo caminho entre a costa e o lugar onde receberiam o primeiro atendimento. 

“Tão mortal quanto a travessia via bote é a caminhada até o camping de transição. Eles chegam à costa traumatizados, exaustos, molhados, e precisam enfrentar até 7 quilômetros de caminhada numa estrada de terra estreita, cheia de abismos. Passei 18 horas dirigindo”, lembra.
Família afegãEdgard com uma família de afegãos que acabara de chegar à Grécia

Depois de 22 dias na ilha, o brasileiro foi para Atenas, o destino seguinte da maioria dos migrantes que desembarcam em Lesbos. De lá, resolveu conferir in loco como era o percurso que eles faziam até a Alemanha. 

“Como voluntário eu lidava com a situação durante o dia, mas à noite eu podia comer uma comida quente, dormir em uma cama, tomar um banho. Resolvi me colocar na mesma condição para entender a crise dos refugiados da perspectiva deles.”

 A VIAGEM
s quase 3 mil quilômetros que Edgard percorreu entre a Grécia e a Alemanha costumam ser completados em uma semana pelos refugiados. O brasileiro levou 26 dias, porque acompanhou diversos grupos e foi parando mais vezes.
Rota percorrida
A presença dele despertou a desconfiança de alguns refugiados e policiais, que suspeitavam que ele pudesse ser traficante de pessoas, repórter disfarçado ou soldado à paisana. 

Mas muitos de seus companheiros de viagem o acolheram e se tornaram amigos. 

“Muita gente me recebeu como parte da família. Teve um dia em que eu estava muito fragilizado, sozinho, encolhido num canto. Um curdo que viajava com a família me disse: ´Filho, me dê um abraço, você está precisando. Juntos somos fortes’. Só consegui completar a jornada porque eles me ajudaram”, diz.
criança que Edgar conheceuEdgard com uma criança que conheceu na viagem.
Após a desconfiança do primeiro contato, o rosto dos refugiados se iluminava quando Edgard revelava sua nacionalidade. “Eles amam nosso país e sabem muito mais sobre a gente do que a gente sabe sobre eles. Quando você fala que é brasileiro, os sorrisos surgem nas expressões mais exaustas. Senti orgulho”, diz.
Edgar e seu amigo sírioEdgard com um sírio que lhe presenteou com uma moeda de seu país para dar sorte durante a viagem.
Na Grécia, Mussan, um afegão que acabara de cruzar o mar Egeu com a família, quis gravar uma mensagem para os brasileiros e pediu que Edgard fizesse a tradução. “Ele estava tão emocionado que quis compartilhar sua alegria com a gente. Afinal, ele tinha sobrevivido aos desafios da travessia desde o Afeganistão, junto com outros 40 familiares, de bebês a idosos”, conta Edgard.

Edgard também ajudou os migrantes como podia. Uma das coisas que fez foi levar pacotes de lenços umedecidos para auxiliar na higiene, já que banho era um luxo. “Chegando a Frankfurt, tomei meu primeiro banho em 12 dias. Quando liguei a água quente, comecei a chorar. Foi emocionante”, descreve.
família de refugiados
Edgard com uma família de refugiados
O advogado atuou ainda como mediador em conflitos dos refugiados com a polícia. Em um campo da Grécia, por exemplo, acompanhou a remoção das famílias pelos policiais, após o governo ordenar o esvaziamento do local. “Se eles usavam a força, eu me colocava entre a autoridade e o refugiado, pedia calma, conversava com ambos para tentar resolver”, conta. 

Nessas situações, chegou a apanhar algumas vezes. Mas teve sucesso em algumas tentativas de acalmar os ânimos. Uma vez, abraçou um policial que tratava com muita agressividade as famílias que acabavam de chegar em um ônibus. 

“Eu disse: calma, eu entendo que você está sobrecarregado, mas eles não têm culpa. Dá um tempo, respira, não desconta neles”, lembra o brasileiro, que ficou com medo de ser preso. “De repente o olho dele encheu de lágrimas. Ele saiu e voltou depois de 15 minutos falando manso. Os soldados precisam seguir as regras, mas tem sido tudo muito duro para eles também”, diz.
brincando com uma criança
O brasileiro brincando com uma criança
Pela experiência de Edgard, os países que melhor recebem os refugiados são a Grécia e a Alemanha. Já os piores tratamentos ele observou na Sérvia e na Macedônia. “Na rota balcânica, o exército te recebe com armas enormes, tanques de guerra, muita agressividade. Os taxistas cobram a mais, a comida é vendida mais cara para os refugiados. Eles exploram mesmo”, relata. 


Edgard não esquece o dia em que um feirante sérvio cobrou 10 euros (cerca de R$ 44) por uma maçã que uma criança síria pediu para os pais, apenas por eles serem refugiados. “Nessa viagem eu pude ver o lado mais obscuro e cruel do ser humano. Mas também vi muita gente fazendo o bem”, pondera. 
Para o brasileiro, o que mais exaure os refugiados não é o frio, a fome ou o cansaço. É a perda do poder de escolha. “Você só come quando tem comida. Quer ir ao banheiro e não tem banheiro. Só viaja quando a polícia deixa o ônibus partir. Só dorme quando possível, porque tem que proteger sua família, suas coisas. Você se sente fragilizado, se sente um nada. Foi a coisa mais dolorosa que já vivi.”

RUMO AO ORIENTE MÉDIO
D
epois de chegar à Alemanha, Edgard foi para a Holanda e agora está descansando na casa de amigos em Amsterdã, enquanto planeja uma ida ao Oriente Médio. 

O brasileiro quer visitar campos de refugiados no Líbano, na Jordânia e na Palestina, além de ir ao Iraque e talvez até à Síria. Seria um próximo passo para completar um ciclo de sua jornada. “Já vi onde os refugiados chegam e para onde eles vão, mas falta saber de onde eles saem. Quero entender o cenário todo”, explica.
aniversário de Edgar
Edgard ganhou um bolo de amigos sírios no seu aniversário, em 6 de janeiro; ele está na Holanda preparando sua ida ao Oriente Médio
Ele agora está pesquisando como fazer isso da forma mais segura possível. Apesar de se preocupar com ele, sua família o apoia. “Eles estão felizes porque estou me realizando”, afirma. “Todo mundo morre, mas nem todo mundo vive. Eu estou vivendo”.


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