sábado, 27 de abril de 2019

VENEZUELA: Após ocuparem praças de RR, venezuelanos são proibidos de acampar durante o dia

Acampamento montado nos fundos da rodoviária visto à noite, em 20/04, e de dia, em 21/04 — Foto: Emily Costa/G1
À noite, cerca de 700 venezuelanos dormem em barracas e sob papelões em alojamento improvisado pelo Exército; há dezenas de crianças.

São dezenas de barracas enfileiradas em um gigantesco acampamento que some ao nascer do sol e reaparece todas as noites nos fundos da Rodoviária Internacional de Boa Vista (RR). É onde ficam centenas de venezuelanos que não têm mais para onde ir.
Ao redor do acampamento, cordas marcam o espaço em que é permitido instalar barracas ou colocar papelões sobre o chão para dormir durante a noite. Militares do Exército patrulham o entorno e quando amanhece, todos são proibidos de ficar ali.

Há três placas espalhadas no terreno. Separam famílias com crianças, casais, mulheres e homens solteiros. Mostram que o espaço faz parte da operação Acolhida, executada pelo Exército, Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR) e ONGs.

Procurada, a operação Acolhida disse que retira durante o dia os imigrantes porque o espaço é público e em razão do calor nas barracas de manhã e à tarde.

Mudança

Até maio passado não era assim. O acampamento é vizinho à praça Simón Bolívar, onde havia uma ocupação de mais de 1,2 mil venezuelanos, a segunda a surgir na região desde 2017.

Na praça, os refugiados passavam dias e noites até que o espaço foi cercado com tapumes para uma reforma e, um mês depois, os imigrantes levados a abrigos. Há um ano uma ocupação em outra praça também foi desfeita.

À época, a Prefeitura e o Exército anunciaram que não iriam mais permitir ocupações em áreas públicas, mas com o fluxo intenso de venezuelanos fugindo da crise para Boa Vista e os abrigos lotados, eles voltaram a se aglomerar nas ruas.

Muitos recém-chegados passaram então a ficar em frente à rodoviária, até que em outubro passado todos foram mandados para a parte de trás do terreno, onde agora 700 pessoas estão pernoitando. Dentro da rodoviária também não é permitido ficar.

“Os militares nos acordam às 4h30, 5h assoprando apitos e mandando todos saírem”, contou Dagly *, 27, enquanto amamentava seu bebê, uma menina de apenas 10 meses.

Mãe e filha chegaram ao país no dia 18 de abril. Tiveram que cruzar rotas clandestinas como muitos têm feito, porque há dois meses o regime de Nicolás Maduro mandou fechar a fronteira com o Brasil.

Desde que desembarcaram na cidade, sem dinheiro algum, passam as noites dentro de uma minúscula barraca emprestada pelo Exército. De dia, devolvem-na aos militares e vagam solitárias pelo entorno já que não é permitido ficar ali.
Refugiados dormem em acampamento improvisado que surge todas as noites atrás da Rodoviária de Boa Vista.

“Pela manhã, quando todos devolvemos as barracas nos dão café. Tem pão, suco. À tarde quando pegamos de novo ganhamos marmitas”, explicou Dagly. "Nos dão comida. Ninguém passa fome".

"Foi uma forma de organizar aquelas pessoas desabrigadas que se espalhavam no entorno da rodoviária à noite", informou a coronel Carla Beatriz, porta-voz da Acolhida ao ser questionada sobre o acampamento improvisado.

Nesta semana, após o G1 procurar a operação Acolhida, tendas foram instaladas no acampamento. "Se tivéssemos mais vagas nos abrigos, tiraríamos todos das ruas. Infelizmente, não é possível", complementou a porta-voz, acrescentando que 35 famílias foram levadas de lá a um abrigo no último dia 20.

Ainda segundo ela, os imigrantes "dormem ordenadamente atrás da rodoviária, com prioridade para famílias com crianças". "Pela manhã devolvem a barraca, retiram os pertences e vão embora, para retornar outra vez à noite", detalhou.

Abrigos lotados

Mais de 3,4 milhões de venezuelanos saíram do país desde 2014 fugindo da crise política e econômica vivida no regime de Maduro, segundo a ONU.

Boa parte cruza a fronteira da Colômbia para sair do país, mas muitos também deixam a Venezuela pela fronteira com o Brasil, causando tensão com a população local e sobrecarregando serviços públicos de Roraima, que vive uma crise fiscal.

Alguns venezuelanos dizem que vão ao acampamento porque estão só de passagem por Boa Vista, outros porque estão à espera de vagas em um dos quase sempre lotados abrigos para refugiados no estado – os 12 têm 6,5 mil moradores, segundo a operação Acolhida.
Cordas delimitam espaços de acampamento improvisado para refugiados venezuelanos.

A comunicação do Alto Comissariado da ONU no estado informou que o espaço atrás da rodoviária é um "braço a mais do Exército e exclusivamente deles, no sentido de dar um teto aos migrantes que até então dormiam nas ruas".

"À medida em que a interiorização for obtendo mais sucesso mais vagas se abrem nos abrigos. E consequentemente mais migrantes-refugiados conseguimos abrigar", disse.

No terreno há 10 banheiros químicos separados para homens e mulheres. Uma água preta cobre os pisos. Exalam um odor fétido, mistura de urina e fezes.

“Os militares fazem a segurança durante a noite. Não permitem que haja roubos, brigas e que ninguém da rua nos faça mal”, contou Williany*, 48, quando perguntada sobre um militar da Polícia do Exército que patrulhava entre as barracas.

“De manhã eles gritam 'embora, embora!'. É difícil para as crianças que às vezes têm sono e choram, mas não importa. Todos temos que sair e só podemos voltar às 17h”.

A administração da Rodoviária Internacional José Amador de Oliveira nega gerência sobre o acampamento, mas confirma que ele só funciona no período da noite.

"De manhã os militares mandam todos embora, mas à noite também é perigoso manter os venezuelanos ali. Há muitas crianças e o fluxo de ônibus é intenso", afirmou o administrador da rodoviária, Makson Dias.

"Já pedimos que retirem esse acampamento daqui. Em março, nos disseram que todos seriam levados a abrigos, mas isso não aconteceu o número de pessoas só cresce. Eram 400 no começo".

Com os dois filhos febris por uma gripe que persiste há dias, Eliannys*, 39, se espreme dentro de uma barraca de solteiro durante as noites no alojamento. O marido, Gabriel*, 29, dorme sob uma caixa de papelão desfeita em frente à barraca.
Praça Simón Bolívar onde mais de 1,2 mil venezuelanos viviam acampados no ano passado.

“Tentamos ir para abrigos, mas só estão aceitando famílias com crianças de até 2 anos”, resumiu Eliannys. “A menina tem 3 e o menino 4, quase 5. Fará aniversário em 19 de julho”, explicou mostrando os filhos.

“Nós vamos a Manaus por isso não quisemos buscar abrigos", contou Adrian*, de 38 anos, recém-chegado ao Brasil. "Já era para estar lá, mas roubaram todo meu dinheiro em Pacaraima [cidade fronteiriça]”.

“Na Venezuela todas as portas estão se fechando, não há oportunidade, emprego ou salário que supere a inflação. Minha esperança é ter uma vida melhor em Manaus”, disse pouco antes de dormir mais uma noite no acampamento.

*Os nomes marcados por asteriscos são fictícios e foram adotados para preservar as identidades dos entrevistados.

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