'La Bestia', o trem que leva imigrantes centro-americanos até a fronteira do México com os Estados Unidos.
A locomotiva apita. No quarto do hotel mexicano, a uma quadra da estação, pulo da cama. Eu havia dormido de roupa, propositalmente. Calcei as botas, peguei a mochila que já estava pronta e sai correndo. Não deu tempo de desligar o ventilador, lavar o rosto e nem de desistir.
La Bestia é o nome informal do trem que corta o México com destino à fronteira dos Estados Unidos. O que transforma a máquina em fera é a forma como ela usada e as vítimas que deixa pelo caminho. Trata-se de um trem de carga em que migrantes clandestinos, principalmente centro-americanos, se penduram para tentar chegar à terra do Tio Sam.
Era o começo da madrugada. Algumas poucas luzes amarelas mal iluminavam a estação. La Bestia estava no breu. Eu, o repórter cinematográfico Michel Mendes e o repórter investigativo Henrique Beirangê, subimos poucos minutos antes do trem começar a se movimentar. Nos esprememos na chamada "gôndola", a parte baixa e um pouco menos perigosa do vagão. Dezenas de migrantes estavam agarrados no teto do trem.
Mulheres e crianças
Na gôndola, dividindo espaço conosco, alguns casais com filhos pequenos. Já com o trem em movimento, uma bebê hondurenha dormia nos braços da mãe, alheia ao barulho do atrito das rodas de ferro com os trilhos e das conversas tensas em volume alto dos passageiros amontoados.
A mulher estava sentada no assoalho do vagão. Um mínimo descuido e a criança poderia acabar embaixo do trem. Eu tenho uma filha de um ano e meio. Foi inevitável pensar nela.
Talvez, o fato de ser pai, tenha me dado um pouco mais de compreensão sobre o desespero dessas pessoas. Ninguém levaria a família para uma viagem tão extenuante e perigosa se tivesse outra opção. Os migrantes saem de seus países de origem com pouco ou nenhum dinheiro.
Caminham por dias, passam calor, frio, sede e fome. Perguntei a um menino de 11 anos sobre o que ele mais sentia falta desde que havia começado a jornada. A resposta foi "comida".
Fugindo da violência
As histórias dos migrantes ilegais são muito parecidas. Deixam países como Honduras, Guatemala e El Salvador para fugir da miséria e da violência. A minoria consegue entrar nos Estados Unidos legalmente. Só no ano passado, pelo menos, 283 pessoas morreram nessa rota, segundo o Controle de Fronteira norte-americano.
A maioria dos migrantes é deportada. Além de frustrados, muitos voltam para seu países em situação pior do que saíram. É o caso de Hector, que entrevistamos em Honduras. Ele caiu do teto de La Bestia aos 17 anos. Teve uma perna decepada pelas rodas do trem e ficou abandonado no deserto mexicano por três dias. Inconsciente, foi resgatado por um grupo de voluntários quando urubus bicavam seu corpo.
A história de Hector me acompanhou na segunda vez em que subi no La Bestia. Dessa vez, fomos no teto do vagão. Depois do estresse dos primeiros minutos no alto do trem, você se acostuma com o balanço, o vento e o sol. É quando o perigo aumenta. Os migrantes sobem no trem já cansados de muitos dias viagem, desidratados e desnutridos. Se dormirem ou ficarem desatentos podem cair ou ser derrubados pelos galhos das árvores que margeiam a linha férrea.
Não existe qualquer forma de segurança no La Bestia. Os passageiros clandestinos vão expostos. Apesar de paupérrimos, os migrantes são alvos frequentes dos criminosos que sobem e descem do trem em movimento com facilidade.
Se não têm algo para entregar aos ladrões podem ser atirados de cima dos vagões. As crianças e as mulheres são ainda mais vulneráveis. As autoridades americanas calculam que de cada três mulheres que fazem a viagem no trem da morte uma é estuprada.
Perigo em Vera Cruz
Nós sabíamos disso quando atravessamos o continente para contar as histórias do La Bestia. Essas informações pesaram no momento mais decisivo dos 21 dias de viagem pela rota da migração ilegal. Todo o caminho do trem é perigoso, mas o trecho de Medias Aguas, no estado de Vera Cruz, é especialmente delicado.
Nosso guia, um experiente fotógrafo mexicano, nos alertou. "Lá, eles não roubam nem sequestram jornalistas. Eles matam". Seria algo como caminhar pelas ruas de um morro carioca dominado pelo tráfico com uma câmera no ombro e sem a autorização do "dono da boca".
Corríamos o risco de perder o La Bestia se não subíssemos nessa região. Como ninguém sabe quando os trens dessa linha partem ou param, poderíamos ter nosso cronograma de viagem alterado ou até não conseguir mais gravar em cima dos vagões. Decidimos recuar. Foi a decisão correta. No dia seguinte, subimos no trem em outro trecho, um pouco menos perigoso. Concluímos o trabalho.
Voltamos para o Brasil em segurança, mas não iguais. Não tem como não se transformar depois de tudo o que presenciamos e vivemos. O apito do trem, agora, tem outro sentido pra mim.
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