quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Irmã fala das últimas lembranças com Marília Pêra e recorda quando médico decretou seis meses de vida para a atriz

A memória pode consolar a perda das perdas? Vinda de uma família de artistas, Marília Pêra sempre defendeu com orgulho a história dos seus, enaltecida por ela com um talento nato. A morte em dezembro do ano passado deixou lacunas irreversíveis ao se pensar nas muitas vidas que jamais ganharão os contornos de sua criação precisa. Assim, a fotobiografia “Marília Soares Marzullo Pêra”, feita em parceria com a irmã Sandra, é agridoce: cristaliza lembranças ao mesmo tempo que alarga o espanto por uma despedida tão precoce.
Viva e atenta, embora debilitada pelo câncer, a atriz viu o livro pronto e, segundo seu desejo, estaria presente também no lançamento, marcado inicialmente para o dia 14 de dezembro. Para evitar o desgaste com os autógrafos, ela sugeriu comprar uma câmera e, no lugar da tradicional assinatura, daria uma foto como recordação. A morte, dias antes, pontuou os eventos de maneira diferente: a obra chegou às livrarias no dia 22 de janeiro, quando Marília completaria 73 anos. A saudade se mantém inabalável na irmã caçula, a quem por vezes coube o papel de filha, mas nem esse sentimento é capaz de tornar seus dias melancólicos. “Melancolia é uma palavra musical, mas desafina”, conclui Sandra, às voltas com preciosas reminiscências.

No domingo anterior à morte, ela teve muita vontade de comer uma maminha Sandra Pêra

— Tenho todas as lembranças comigo. A mais lindinha de todas aconteceu uma semana antes de ela morrer. Estávamos na sala de casa e, para distrair a cabeça, ela quis ouvir uma entrevista que ela havia dado para a rádio MEC. Fiquei sentada ao seu lado. Ela ficou sorrindo. Vi que aquilo fez um bem e falei para ouvirmos as bases do CD que ela estava gravando. Marília estava cantando lindo, baixinho... Ficamos ouvindo, conversando, fazendo planos — conta ela, de 61 anos, que acrescenta: — No domingo anterior à morte, ela teve muita vontade de comer uma maminha (risos). Fomos a uma churrascaria, e ela comeu maminha, polenta e ainda bebeu cerveja.

Ainda bebê com os pais, ambos atores, Dinorah Marzullo e Manoel Pêra
Apesar do lamento intenso, a atriz conta não ter se esquivado de ver os registros da irmã. Diferente dos sobrinhos e de Bruno Farias, marido de Marília, Sandra assiste aos episódios do humorístico “Pê na cova”, por exemplo. Olha, busca e vasculha tudo. Seria uma forma de costurar a distância? A ela, resta a constatação : “Ah, meu Jesus, ela não está mais aqui”.

O médico disse isso para ela sem que ninguém perguntasse. “Você já parou para pensar na sua finitude?"Sandra Pêra

Ao relembrar momentos ao lado de Marília — muitos registrados na fotobiografia, motivos de inúmeras alegrias —, Sandra ainda se detém num dos episódios mais amargos da luta dela contra a doença, descoberta um pouco antes do carnaval de 2014. Em outubro do ano passado, após uma tomografia, o oncologista responsável pelo tratamento da artista afirmou que ela teria seis meses de vida. A informação, dita de forma bruta, acelerou o processo da morte, segundo Sandra.

— O médico disse isso para ela sem que ninguém perguntasse. “Você já parou para pensar na sua finitude? A partir de agora, você vai sentir muita falta de ar, vai perder os movimentos de não sei onde. Você tem seis meses de vida”. Ela ficou catatônica e nunca mais voltamos lá. Marília falava comigo: “Ele precisava dizer isso?”. E ficou se perguntando: “Então, eu vou morrer em abril? Em abril?”. Eu dizia que não, que ele era limitado. Sofremos muito juntas. Foi uma sentença. O cara que estuda os tumores precisa entender que em volta dos tumores existe uma pessoa ali, frágil — reforça ela, preferindo não revelar o nome do profissional: — Ele pode ler isso e dizer: “Mas eu tinha razão”. A questão não é essa. Ele deveria ter falado com a família antes e a gente decidiria como agir.
Marília Pêra caracterizada como Carmen Miranda no desfile da 
Império Serrano de 1972 
Marília Pêra canta Carmen Miranda em musical de 2005 

Em meio ao severo tratamento contra o câncer, Marília se esmerou para abraçar os prazeres de seu ofício. Cantar, entre eles, a deixava especialmente feliz. Empolgada e afinada, começou a gravar um CD pela Biscoito Fino, mas o material não deve ser lançado. Trata-se de um desejo da própria artista, que apenas havia concluído a voz-guia, a base do novo trabalho. Dona de um ouvido exigente, não admitia que as canções fossem apreciadas pelo público sem terem sido devidamente finalizadas.

É muito complicado não tê-la, é muito esquisito, dolorido ainda.Sandra Pêra

— Ela me pediu: “Pelo amor de Deus, não deixa isso sair”. E vai ser assim. A sensação que eu teria caso deixasse é que eu a estaria traindo. Ela não está mais aqui, mas é como se, de algum lugar, ela estivesse. Não sei explicar, é muito difícil. Não tem nada a ver com religião, eu não sou assim. Mas é muito complicado não tê-la, é muito esquisito, dolorido ainda. Espero que com o tempo as coisas se acalmem — ressalta Sandra, que afirma ter planos de fazer um acervo vocal dela: —Tenho coisas riquíssimas, compactos feitos há 50 anos.
A apresentadora Edna Savaget com quatro gerações da família no sofá:
 a avó (Antônia), a mãe (Dinorah), Sandra, Marília e Ricardo Graça Mello
, primogênito de Marília

Nos sonhos de Marília, ela mesma teria a chance de narrar este episódio num documentário.“Vou contar isso sem peso”, lembra Sandra os dizeres da irmã, cuja maior angústia era a possibilidade de não voltar a andar. Morreu dormindo, enfim, com inúmeros desejos suspensos.

A memória pode consolar a perda das perdas? Tensionada entre a cor forte da existência e o espanto da morte, a lembrança resiste valente nas imagens e sons, rastros de uma mulher preocupada em trançar os muitos fios de sua história, à revelia do tempo. Em testamento, contudo, a atriz pediu que ela não fosse grafada por outras pessoas.

— Ela mesma começou a escrever sua biografia, mas está tudo parado. Temos que respeitar o que ela pediu. Nossa vida toda foi feita de trabalho e amor, é o que temos uma pela outra — enaltece Sandra, guardiã das recordações da família.

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